18 de mai. de 2007

O refúgio do caçador.

Matéria publicada na Revista L'UOMO, edição de Mar/Abr-2007.


Aspirantes a cargos executivos de todo país poderiam rezar para conhecê-lo. Com um nome que não nega a origem alemã, Günter Keseberg já participou da contratação de cerca de 1000 profissionais para cargos de alto escalão no Brasil e na Europa. O headhunter que atua no mercado de Recursos Humanos há mais de 20 anos, me recebeu no restaurante de um requintado hotel da capital paulista para revelar à Luomo a sua fonte de sabedoria e pesquisa. Acredite, este caçador de talentos tem refúgios que vão além dos resorts com camas cobertas por lençóis egípcios.
Por Bianca Moretto

O perigo de pôr em risco a sua integridade física e moral logo são alertados pela companhia de viagens especializada em roteiros exóticos. A Rota da Seda foi o último destino de férias escolhido por Gunter para passar 20 dias. “Ao contrário do velejador Amir Klink que prepara cada centímetro do seu barco e planeja todo o trajeto com muita disciplina e precisão, em viagens como esta o mal tempo não é o único imprevisto que pode ocorrer” garante Gunter. O itinerante assume a responsabilidade por possíveis danos pessoais e materiais em casos de guerra, acidentes e instabilidade política. Além disso, o atendimento médico não é garantido em todas as áreas do percurso escolhido. O aviso é válido, o Focker 50 ocupado pelo nosso entrevistado em uma das suas expedições, caiu uma semana depois de ele ter estado a bordo. Mas, o que leva um intelectual graduado em História, Ciência Política e Economia pela Universidade de Colônia, Alemanha, e pós-graduado na Universidade de Luneburg, do mesmo país, a se arriscar tanto? Parece ser mais do que adrenalina. Segundo Gunter, conhecer a essência de outras culturas ajuda e muito na hora de escolher um profissional compatível ao posto requerido.
Contudo, deixando o trabalho à parte, encontramos um pouco do espírito aventureiro e desbravador do Marco Polo nesta história. A Rota da Seda, expressão cunhada no século 19 pelo estudioso alemão Ferdinand von Richthofen, é uma legendária rede de estradas que conectavam o Extremo Oriente ao Mediterrâneo. Entre o século 2 antes de Cristo até meados do século 16, milhares de caravanas de camelos transportavam mercadorias do Oriente para a Europa e vice-versa. A seda, objeto de desejo dos ricos e poderosos da Europa e do mundo árabe, foi escolhida como símbolo dessa imensa rede de comunicação terrestre. O relato da incrível saga de Marco Polo que durou 24 anos, foi eternizado por Rustichello da Pisa, seu colega de cela em Gênova, que escreveu em francês provençal “ O Livro das maravilhas - A descrição do mundo”. Dos três volumes da obra Gunter leu dois. Lendários ou não, alguns relatos de Marco Polo são considerados importantes referenciais históricos até os nossos dias.

FARTO DE REPERTÓRIO ELE PARTIU, COM A ESPOSA RUMO A PARIS, DE LÁ PARA LONDRES E FINALMENTE TASHKENTE, A CAPITAL DO UZBEQUISTÃO
Farto de repertório ele partiu, junto com a esposa, rumo a Paris, de lá para Londres e finalmente Tashkent a capital do Uzbequistão. Daqui por diante a geografia varia entre grandes lagos e grandes desertos, isto sem falar de algumas das maiores montanhas do mundo. Mesmo durante o frio mais rigoroso o lago Issuk kul nunca congela, as estradas não fecham e os hotéis são bem aquecidos. Porém, caso você queira se aventurar por lá, Gunter sugere que faça esta viagem em julho, quando a temperatura fica entre os 15 e 30 graus celsius. No Quirguistão, por conta da altitude, a temperatura pode variar de 20 a 10 graus em minutos.
Continuando o passeio, chegar a Khiva é como visitar um museu a céu aberto. As suas muralhas guardam mesquitas e madrassas (escolas islâmicas) praticamente intocadas pelo tempo. Chega a hora de cruzar o deserto do Karakum para alcançar a cidade de Bukhara. Famosa por seus tapetes, a região central está repleta de bazares coloridos que inspiram as compras. Até o próximo ponto de parada são mais seis horas de carro entre aldeias e natureza agrícola do povo Uzbeki. Samarkand abriga um enorme complexo de mesquitas que formam uma praça central. Gunter me conta, enquanto mostra as fotos da viagem, que o observatório astronômico de Ulugbek atesta que o primeiro mapa astral fora feito lá há cerca de 1400 anos.
Estamos quase na metade da viagem e quando pergunto o que mais lhe chamou a atenção no trajeto, Gunter é breve em dizer que “a ausência de mulheres nas ruas é notável, bem como a forma com que os homens “trabalham” o seu tempo ocioso tomando chá e conversando.” Para o nosso caçador de talentos saber disfrutar o ócio requer sabedoria. (Bem, sabe disso quem é empurrado pela velocidade frenética de uma metrópole. A correria pode se tornar um vício e o tempo livre um tédio.)
Bem vindos a Bishkek, a capital do Quirguistão. As avenidas arborizadas e a proximidade dos Montes Alatau com seus picos nevados são o cenário desta ataente cidade onde a influência russa serviu de base para o entrosamento entre a Ásia e a Europa. O estilo russo também se revela nas casas estilo colonial e na catedral de Karakol totalmente de madeira, sem um único prego sequer. Quanto aos hábitos alimentares eles adotaram uma dieta rica em carnes, arroz e pão, o tempero por alí não é um ponto alto. O custo de cada refeição no hotel gira em torno dos 10 dólares. Gunter chama a atenção para o fato da comida em outros estabelecimentos ser até 50% mais barata.
Aqui começa um dos mais novos palcos de trekking do planeta: o Tian Shan que quer dizer montanhas celestiais. Aos 3752m de altitude está a fronteira entre o Quirguistão e a China. Uma linha que divide dois mundos completamente opostos e até bem pouco tempo vetado a ocidentais. Uzbequistão, Quirguistão, Kasaquistão e China, todos estes países exigem visto e é preciso providenciá-los 30 dias antes da partida. Outro detalhe importante: a febre amarela ainda não foi erradicada na América Latina, por isso a vacina contra a doença é exigida aos brasileiros.
A viagem ainda não acabou, mas abro um espaço para comentar que enquanto conversávamos sobre a Mongólia, Gunter sugeriu que eu assistisse ao filme “Camelos também choram”. O documentário não tem nada do perfil americano com clímax, ou finais previsíveis. O enredo em que uma família mongol revela os seus hábitos e valores para sobreviver no deserto como nômades, uma prática quase em extinção, é instigante. Os camelos são um elemento indispensável para sobrevivência deste povo. O respeito com que eles tratam os animais é admirável. “Os homens de hoje cuidam da natureza como se fossem a última geração aqui na terra” , diz um dos personagens em tom de ensinamento ao neto que o escuta com atenção. Pelo óbvio, entende-se que não há tv por ali, assim, sobra tempo para a tão esquecida quanto fundamental comunicação interpessoal. Termino o comentário sobre o filme dizendo que me impressionou o fato de que por mais que o camelo fêmea estivesse sofrendo com dores do parto os mongóis só interfiriram quando tratava-se de preservar a integridade vital dos animais. Contemplação, eis o predicado que muitas vezes nos falta.
O último trecho do percurso... As altitudes nas cordilheiras Tian Shan, Pamir e Karakoram vão de 5 a 8 mil metros . Chove pouco na região e o céu tende a estar sempre azul. Enfim Kashgar, este é um dia nobre na vida de qualquer explorador. A cidade tem sido pedra fundamental nas rotas comerciais nos últimos 2000 anos. Uma grande feira movimenta uma confusão organizada onde barganha-se de tapetes a cavalos ao lado do museu da seda.
Com tantos nomes de pronuncia complicada somados a variedade de informações, redigir e compreender este texto não são tarefas fáceis. Então, imagine assimilar a vivência do conteúdo adquirido em uma viagem como esta?! Gunter sugere que aventuras assim, sejam feitas com intervalos de três anos, tempo suficiente para entender o que viu, olhar as fotos, relembrar dos detalhes e aplicar as lições de vida no dia a dia. Então, quando o espírito aventureiro voltar a te instigar, está na hora de começar uma nova pesquisa para a próxima viagem.
Assim, aos candidatos, fica o aviso: “antes de ser um bom profissional é preciso ser um homem íntegro com princípios bem estabelecidos e literalmente fazer juz ao termo “homo duas vezes sapiens”. Talvez, em algum momento, como o velejador citado no início do texto, seja preciso sair de “terra firme” para retomar a essência da vida e perceber que o mundo não vira um precipício no horizonte.
Enquanto você lê esta matéria Gunter está em algum ponto da América Latina no comando de uma Land Rover. Uma viagem de 10.000 kilômetros em solitário. Quando voltar irá direto para o seu refúgio na Bahia, uma casa com 500 metros quadrados e quatro suítes que construiu em 1993 em Santo André para viver com a família e receber os diretores de grandes empresas como Enzo, Mercedes Benz e Semp Toshiba. O cantor Julio Iglesias já tentou comprar esta residência por 1 milhão de reais , mas a proposta foi recusada. Afinal, sejam estas incríveis expedições um sinal de busca ou de fuga, como diz o próprio Gunter: “ o importante é ter um porto seguro para onde voltar”.
Em tempo: Gunter mantém um Centro de Convivência Cultural em Santo André, Bahia. Lá cerca de 85 crianças fazem aulas de computação, dança, música e artes. Ele mantém esta ONG sozinho desde 1992.

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